Quando pensei em escrever a resenha de a máquina de fazer espanhóis, do escritor português Valter Hugo Mãe, pensei, oh, escreverei toda em letras minúsculas, assim como o autor fez no livro, será uma ideia tão genial. Até jogar o nome do livro no Google e perceber que absolutamente todas as pessoas que o resenharam tiveram a mesma ideia. Portanto, colocarei as maiúsculas em seus devidos lugares, com exceção das transcrições de passagens do livro, a fim de lhe respeitar a estética.
Capa de “a máquina de fazer espanhóis”, da editora Cosac Naify, com ilustração de Lourenço Mutarelli
A máquina de fazer espanhóis conta a história de um sujeito de 84 anos, o sr. Silva, que logo no início do romance perde sua amada esposa, Laura, aquela cuja companhia lhe dava o eixo da vida. A família, então, acha por bem assenta-lo em um asilo de nome sugestivo, o Feliz Idade, onde ele passa pelo processo de luto e ressignificação da vida, através do contato com o outro e dos exames de consciência que a perspectiva da velhice lhe provocou.
O escritor se expressa numa língua fluida e poética que vai transcorrendo sem os entraves das letras maiúsculas. A narrativa se inicia com a intensa amargura do sr. Silva diante da morte de sua querida Laura e da revolta de o terem posto ali, resultando na fúria contra a vida em geral. A seguinte passagem expressa bem essa primeira fase:
“como faria falta ferrarmos toda a gente e vingarmo-nos do mundo por manter as primaveras e a subitamente estúpida variedade das espécies e as manifestações do mar e a expectativa do calor e a extensão dos campos e as putas das flores e das arvorezinhas cheias de passarinhos cantantes aos quais devíamos torcer o pescoço para nunca mais interferirem com as nossas feridas profundas”.
É o desenrolar desse processo de negação, ira, tristeza e aceitação que acompanhamos, além das reflexões que a vida gregária, até então desconhecida pelo sr. Silva, acarretou. “precisava desse resto de solidão para aprender sobre esse resto de companhia”, percebe ele, chegando também à constatação de que “acontecem coisas mirabolantes neste mundo, a imaginação da realidade é delirante. é maravilhosamente delirante”, surpreendendo-se porque encontrou na dor os “caminhos quase insondáveis para novas realidades”.
O livro tem forte ligação com a metafísica de Fernando Pessoa, especialmente no que se refere ao poema “A Tabacaria”, e sob a luz desse poeta português o Valter Hugo Mãe demonstra que aos mais velhos transborda uma metafísica que está fora de alcance a nós jovens demais, à exceção dele próprio, que à época do lançamento do livro contava com apenas 39 anos de idade.
É nessa profunda empatia que o talento literário do autor se reafirma, além da capacidade de discorrer sobre as relações humanas, memória, vida e morte em uma perpectiva que estão para além dos seus poucos anos. Outro mérito é introduzir o humor em trechos hilariantes, capazes de levar o leitor às gargalhadas, apesar dos temas densos que predominam a narrativa. Tendo dito isto, me parece até redudante dizer que recomendo altamente a obra.
*O título é uma alusão a um poema de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, em que ele diz “Há metafísica bastante em não pensar em nada”.
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